domingo, 30 de novembro de 2025

TRABALHO NÃO PODE SER CASTIGO * Wilson Coêlho/ES

TRABALHO NÃO PODE SER CASTIGO
Wilson Coêlho¹

TEATRO

Ator I – Fora 6 por 1! Fora 6 por 1! Fora 6 por 1! 

Ator II – O que é isso maluco? Falando sozinho? 

Ator I – Como falando sozinho? O que estou dizendo é sobre uma Proposta de Emenda à Constituição, a PEC 8/2025 que propõe o fim da escala de trabalho 6x1. E isso já está na boca do povo. 

Ator III – (Entrando, bravo) Isso é um absurdo! Como a empresa vai produzir com vocês folgando tanto? 

Ator I – Como absurdo? Você não entende que nós merecemos descansar, passar mais tempo com a família, visitar amigos e ter vida social?  

Ator III – (Irônico) Família? Amigos? No meu tempo, trabalhávamos 12 horas por dia e não reclamávamos! 

Ator II – Provavelmente, no seu tempo não existiam direitos trabalhistas, mas quer você queira ou não, o mundo evoluiu e o trabalhador ficou mais consciente de sua classe e da valorização do seu trabalho. 

Ator IV – Querem saber de uma coisa? Esse papo de acabar com o 6x1 é muito tímido. Temos que lutar no mínimo é por 4x3. Não estamos lutando por privilégios, mas por direitos e, diga-se de passagem, direitos humanos. 

Atores I, II e III – Como assim? 

Ator IV – Além do final de semana, o trabalhador também tem que ter no mínimo um dia útil para folgar, para descansar e sair da bolha do seu trabalho. 

Ator III – Aí já é exagero! O patrão tem um monte de gastos para garantir o empregado e um dia útil seria um grande prejuízo para ele. 

Ator IV – Exagero? Você só está preocupado com os gastos do patrão? E

quem seria o patrão se não tivesse alguém que trabalhasse para ele? Fique sabendo que a cada oito horas trabalhadas o operário recebe o equivalente a 30 minutos do que produz e o patrão fica com as outras sete horas e meia.  

Ator II – É isso mesmo. Valorizar e respeitar o trabalhador não dá nenhum prejuízo ao patrão, apenas diminui muito pouco no seu lucro, uma insignificância na mais-valia. Além do mais, trabalhadores descansados produzem muito mais. 

Ator I – Temos que entender que o dia útil de folga é também a oportunidade do trabalhador tratar de questões no banco, cartório, médico, prefeitura e diversos outros lugares sem ter seu ponto cortado e sem ter que arranjar atestado ou mendigar uma permissão do patrão. 

Ator IV – Sem querer ser óbvio, também precisamos atentar para algo bastante humano que é a convivência desse trabalhador com sua família, um pouco mais de atenção para com os filhos, poder visistar um parente, um amigo. 

Ator II – Claro. Esse que só folga no fim de semana não consegue nem descansar. Tem sempre uma torneira para consertar, uma arrumação de casa, compras no supermercado... 

Ator I – (Interrompendo) ... sem contar que também necessita pensar um pouco. Fazer alguma reflexão sobre sua vida e o mundo. O trabalho em excesso tira o ser humano da vida. Não podemos viver para trabalhar, mas trabalhar para viver. Mas é viver dignamente, não apenas para pagar um aluguel e comer, mas para usufruir da vida. 

Ator II – Concordo plenamente. O trabalho não pode ser uma punição ao trabalhador, uma preço a pagar pelo direito de morar, de comer e de existir, mas deve ser uma coisa feita com amor e com a consciência de que o que faz é uma contribuição para a humanidade, para um mundo melhor e mais justo.

Ator IV – Sabem quem inventou a roda? 

Ator I – Claro! Foram os trabalhadores! 

Ator IV – Sim, aliás, tudo o que existe no mundo foi construído pelos trabalhadores, embora sempre haja uma placa com o nome dos inventores que nunca pregaram um prego. Mas os trabalhadores que inventaram a roda não eram aqueles que no momento carregavam a pedra. 

Ator II – Como assim? 

Ator IV – É que aqueles que carregavam a pedra estavam tão preocupados e concentrados em não deixar que ela lhes caisse nos pés, bem como até onde levá-la que não tinham atenção para outra coisa. Quero dizer que os trabalhadores que olhavam de fora pensavam: que ridículo tanto esforço e perigo! Por que não colocam essa pedra em cima de umas toras para melhor transportá-la? 

Ator II – Entendi. O distanciamento nos permite pensar e refletir sobre as coisas. Assim os trabalhadores criaram a roda e, claro, porque estavam de folga puderam ver e criar uma solução por estarem distanciados e analisar a situação. 

Ator IV – Algum de vocês conhecem o poema de Vinícius de Moraes, o "Operário em construção"?  

Ator II – Eu sei desse poema. Posso recitá-lo? 

Ator IV – Claro, faça-nos esse favor¹ 

Ator II – O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO 

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe 

num momento de tempo todos os reinos do mundo. 

E disse-lhe o Diabo: 

Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque

a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu. 

E Jesus, respondendo, disse-lhe: 

Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás. 

Lucas, cap. IV, versículos 5-8 

Era ele que erguia casas 

Onde antes só havia chão. 

Como um pássaro sem asas 

Ele subia com as casas 

Que lhe brotavam da mão. 

Mas tudo desconhecia 

De sua grande missão: 

Não sabia, por exemplo 

Que a casa de um homem é um templo 

Um templo sem religião 

Como tampouco sabia 

Que a casa que ele fazia 

Sendo a sua liberdade 

Era a sua escravidão. 

De fato, como podia 

Um operário em construção 

Compreender por que um tijolo 

Valia mais do que um pão? 

Tijolos ele empilhava 

Com pá, cimento e esquadria 

Quanto ao pão, ele o comia... 

Mas fosse comer tijolo! 

E assim o operário ia 

Com suor e com cimento 

Erguendo uma casa aqui 

Adiante um apartamento

Além uma igreja, à frente Um quartel e uma prisão: Prisão de que sofreria 

Não fosse, eventualmente Um operário em construção. 

Mas ele desconhecia 

Esse fato extraordinário: Que o operário faz a coisa E a coisa faz o operário. De forma que, certo dia À mesa, ao cortar o pão O operário foi tomado 

De uma súbita emoção Ao constatar assombrado Que tudo naquela mesa Garrafa, prato, facão — Era ele quem os fazia 

Ele, um humilde operário Um operário em construção. Olhou em torno: gamela Banco, enxerga, caldeirão Vidro, parede, janela 

Casa, cidade, nação! 

Tudo, tudo o que existia Era ele quem o fazia 

Ele, um humilde operário Um operário que sabia Exercer a profissão. 

Ah, homens de pensamento Não sabereis nunca o quanto Aquele humilde operário

Soube naquele momento! Naquela casa vazia 

Que ele mesmo levantara Um mundo novo nascia De que sequer suspeitava. O operário emocionado Olhou sua própria mão 

Sua rude mão de operário De operário em construção E olhando bem para ela Teve um segundo a impressão De que não havia no mundo Coisa que fosse mais bela. 

Foi dentro da compreensão Desse instante solitário Que, tal sua construção Cresceu também o operário. Cresceu em alto e profundo Em largo e no coração 

E como tudo que cresce Ele não cresceu em vão Pois além do que sabia 

Exercer a profissão — O operário adquiriu 

Uma nova dimensão: 

A dimensão da poesia. 

E um fato novo se viu 

Que a todos admirava: 

O que o operário dizia 

Outro operário escutava. E foi assim que o operário Do edifício em construção

Que sempre dizia sim 

Começou a dizer não. 

E aprendeu a notar coisas 

A que não dava atenção: 

Notou que sua marmita 

Era o prato do patrão 

Que sua cerveja preta 

Era o uísque do patrão 

Que seu macacão de zuarte Era o terno do patrão 

Que o casebre onde morava Era a mansão do patrão 

Que seus dois pés andarilhos Eram as rodas do patrão 

Que a dureza do seu dia 

Era a noite do patrão 

Que sua imensa fadiga 

Era amiga do patrão. 

E o operário disse: Não! 

E o operário fez-se forte 

Na sua resolução. 

Como era de se esperar 

As bocas da delação 

Começaram a dizer coisas Aos ouvidos do patrão. 

Mas o patrão não queria 

Nenhuma preocupação 

— “Convençam-no” do contrário — Disse ele sobre o operário 

E ao dizer isso sorria. 

Dia seguinte, o operário

Ao sair da construção 

Viu-se súbito cercado 

Dos homens da delação E sofreu, por destinado Sua primeira agressão. Teve seu rosto cuspido Teve seu braço quebrado Mas quando foi perguntado O operário disse: Não! 

Em vão sofrera o operário Sua primeira agressão 

Muitas outras se seguiram Muitas outras seguirão. Porém, por imprescindível Ao edifício em construção Seu trabalho prosseguia E todo o seu sofrimento Misturava-se ao cimento Da construção que crescia. 

Sentindo que a violência Não dobraria o operário Um dia tentou o patrão Dobrá-lo de modo vário. De sorte que o foi levando Ao alto da construção 

E num momento de tempo Mostrou-lhe toda a região E apontando-a ao operário Fez-lhe esta declaração: Dar-te-ei todo esse poder E a sua satisfação 

Porque a mim me foi entregue

E dou-o a quem bem quiser. Dou-te tempo de lazer 

Dou-te tempo de mulher. Portanto, tudo o que vês Será teu se me adorares E, ainda mais, se abandonares 

O que te faz dizer não. 

Disse, e fitou o operário 

Que olhava e que refletia Mas o que via o operário O patrão nunca veria. 

O operário via as casas 

E dentro das estruturas 

Via coisas, objetos 

Produtos, manufaturas. 

Via tudo o que fazia 

O lucro do seu patrão 

E em cada coisa que via Misteriosamente havia 

A marca de sua mão. 

E o operário disse: Não! 

Loucura! — gritou o patrão Não vês o que te dou eu? Mentira! — disse o operário Não podes dar-me o que é meu. 

E um grande silêncio fez-se Dentro do seu coração 

Um silêncio de martírios 

Um silêncio de prisão. 

Um silêncio povoado 

De pedidos de perdão

Um silêncio apavorado 

Com o medo em solidão. 

Um silêncio de torturas 

E gritos de maldição 

Um silêncio de fraturas 

A se arrastarem no chão. 

E o operário ouviu a voz 

De todos os seus irmãos 

Os seus irmãos que morreram 

Por outros que viverão. 

Uma esperança sincera 

Cresceu no seu coração 

E dentro da tarde mansa 

Agigantou-se a razão 

De um homem pobre e esquecido 

Razão porém que fizera 

Em operário construído 

O operário em construção. 

Todos – (Aplausos.) 

Ator IV – Nada tão simples. Nem é preciso desenhar. 

Ator III – Mas, voltando para a questão atual desse fora a escala 6x1, tenho uma dúvida (hesitante) ... e se as empresas começarem a demitir? 

Ator I – Isso é o que sempre usam para nos amedrontar. As empresas só existem porque encontram quem trabalha. Se demitirem, elas não terão a quem explorar e vão perder seus clientes e, em consequência, seu capital.  

Ator II – (Pensativo) Enfim, acho que devemos ser mais ousados e lutar para trabalhar no máximo quatro dias por semana, talvez... só talvez valha a pena. 

Ator IV - (Sorrindo) É isso que estamos dizendo! Um trabalhador descansado tem mais tempo para sua vida pessoal e familiar, ou seja, é um trabalhador 

feliz! 

Ator I – E um trabalhador feliz produz mais! Não produz apenas por medo de  perder o emprego, mas pelo prazer de entender que o seu trabalho é uma  forma de contribuir com outras pessoas, de tornar o mundo mais justo, mais  humano. 

Ator II – Além de poder ver meu neto no fim de semana, ir ao cinema ou ao teatro, encontrar com parentes e amigos. 

Todos – Afinal, o que a PEC propõe? 

Ator I – Redução da jornada semanal de 44 para 36 horas. Ator II – Trabalho distribuído em 4 dias por semana, com 3 dias de descanso. Ator III – Manter o limite de 8 horas diárias. 

Ator IV – Sem perdas salariais. 

Ator I – E já contamos com um forte apoio popular. Uma pesquisa da Genial/Quaest revelou que 71% dos brasileiros são favoráveis ao fim da escala 6x1. 

Ator II – É isso mesmo. O apoio é especialmente forte entre as mulheres que tem 77% a favor. 

Ator II – Além dos 80% dos jovens de 16 a 34 anos.  

Ator III – Sem contar os 76% das pessoas com ensino médio completo. Todos – Estamos no caminho certo. A cada um conforme suas necessidades! 

Ator I – O Atlas da Escala 6x1 mostra que essa jornada afeta principalmente jovens negros periféricos, com altos índices de estresse e esgotamento

nervoso. 

Ator II – Sindicatos e movimentos sociais entenderam e defendem que o modelo atual prejudica a saúde mental, o convívio familiar e o acesso à educação e lazer. 

Ator III – A proposta também é vista como uma forma de gerar mais empregos, já que a redução da jornada exigiria mais contratações. 

Todos – Por uma jornada de trabalho mais humana! Viva! Viva a classe trabalhadora! São os trabalhadores que produzem a riqueza do país, mas são justamente os que dela não usufruem, pois a riqueza sempre fica nas mãos daqueles que os exploram. 

Ator I – Eu sei que nós não ensaiamos, mas quero fazer um apelo aqui e gostaria de propor que todos dissessem juntos duas frases. A primeira é: Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos! Vamos lá? 

Todos – Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos! 

Ator I – A segunda frase é: O povo unido jamais será vencido! Repitam comigo. 

Todos – O povo unido jamais será vencido!  

CAI O PANO

1 - WC - Wilson Coêlho é dramaturgo e escritor, graduado em filosofia e doutor em estudos literários. Filiado à SBAT.

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